A "crise" de Espanha
João Marques de Almeida Aparentemente, tudo corre bem em Espanha, no momento em que muita coisa corre mal na Alemanha e em França.
Quando se fala das crises na Europa, raramente se fala de Espanha. A economia espanhola continua a crescer a um ritmo superior ao do seu vizinho do norte e de outras potências da União, como a Alemanha e a Itália. De tal modo que há quem fale do "milagre económico espanhol". O desenvolvimento económico tem sido acompanhado por uma política externa agressiva, provocando o aumento da influência diplomática espanhola, quer na Europa, como noutras regiões, nomeadamente na América Latina. Também neste caso, muitos referem-se a Espanha como uma potência europeia emergente.
Aparentemente, tudo corre bem em Espanha, no momento em que muita coisa corre mal na Alemanha e em França.
No entanto, as boas aparências escondem os pontos mais preocupantes de uma realidade espanhola desigual. Está a aparecer no país vizinho uma combinação de factores que pode causar uma grave crise do Estado, cujas consequências não se podem prever. Apesar da integração europeia, os cidadãos continuam a exigir que o seu Estado cumpra, entre outras, três tarefas essenciais:
garantir a sua segurança interna, proteger as fronteiras nacionais (principalmente as que são também europeias) e manter a unidade nacional. Se se perceber que o Estado falha nalguma destas obrigações, ou em todas, há uma crise séria.
Antes de mais, a questão da unidade nacional espanhola passou a ser discutível, no sentido em que se tornou objecto de redefinição. A auto-definição da Catalunha como uma "nação" questiona não só a indivisibilidade da nação espanhola, consagrada na Constituição do país, como a solidariedade nacional. Em primeiro lugar, como reconheceu o primeiro-ministro espanhol, o problema não é meramente constitucional, possível de ser resolvido com uma revisão da Constituição. Estamos perante um problema de identidade nacional: a maioria dos catalães não só se considera diferente dos restantes espanhóis, como, e mais importante, está a deixar de se identificar como espanhol. A questão identitária é agravada por um problema económico. Sendo a região mais produtiva e rica de Espanha, a Catalunha quer mais autonomia para decidir sobre o destino das suas receitas financeiras. Esta pretensão significa uma rejeição da unidade económica nacional nos termos actuais.
A história moderna das auto-determinações nacionais demonstra que a mistura entre identidades culturais e nacionalismos económicos pode ter consequências incontroláveis. Além do mais, a natureza pacífica e democrática do processo catalão agrava as dificuldades de resposta do Estado espanhol. Se o "nacionalismo catalão" for reconhecido politicamente, os efeitos serão sentidos rapidamente no país Basco e, provavelmente, na Galiza.
Para além da questão nacional, o Estado espanhol enfrenta um desafio igualmente grave nas suas fronteiras do norte de África, em Ceuta e Melilla.
Neste caso, há dois pontos que devem ser destacados. Por um lado, a vulnerabilidade destas fronteiras perante a concentração de população vinda de uma extensa área do continente africano. Por outro lado, o facto de duas cidades espanholas, localizadas em África, estarem fechadas aos africanos pode criar problemas políticos complicados. Os sites dos grupos radicais islâmicos começam a referir-se, com maior insistência, à "ocupação espanhola" de "territórios muçulmanos", e apontam a Espanha como um alvo central na luta contra o "infiel Cristão". Se à incapacidade de manter a "indivisibilidade da nação espanhola", se juntar a vulnerabilidade das fronteiras externas e a fragilidade perante grupos terroristas islâmicos, a Espanha poderá enfrentar uma crise muito complicada nos próximos tempos.
Seria útil que em Portugal se reflectisse seriamente sobre isto, e se controlasse a tendência para euforias despropositadas.
João Marques de Almeida é director do Instituto de Defesa Nacional e assina esta coluna semanalmente à segunda-feira.
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